"O que você sabe sobre esta questão?", disse o Rei para Alice.
"Nada", disse Alice.
"Absolutamente nada?", insistiu o Rei.
"Absolutamente nada", disse Alice.
"Isso é muito importante", disse o Rei... (Lewis Carroll)



domingo, 8 de agosto de 2010

Uma paulista no Portinho

É um enorme privilégio ser turista no lugar que se escolhe pra viver. Olhos de turista são mais tolerantes e generosos com o que veem e, acima de tudo, jamais perdem o elemento curiosidade, graças ao qual se está sempre descobrindo novidades mesmo no antigo. Cerca de um ano e alguns domingos atrás esses olhos saíram pra passear num dia ensolarado, bem diferente do de hoje, e o resultado ficou registrado num e-mail compartilhado com amigos daqui e de fora. O texto vai reproduzido na íntegra a seguir e é de novo dedicado aos meus caros e minhas caras imprescindíveis que ajudam a dar um sentido familiar ao estrangeiro.
-----
Nas entrelinhas do trabalho que não termina me dei conta de que este mês completo 8 anos de Portinho. Passou voando. Parece que foi ontem ainda que andava perambulando com dor no pescoço de tanto olhar pros altos da Cidade Baixa à procura do que seria minha primeira "casa própria". Primeiro meio-inverno, depois flores coloridas, forno alegre sem férias, folhas caídas, e tudo de novo, várias vezes. E, apesar dos pesares, o encanto ainda não se quebrou. Não só pelas águas do Guaíba, mas também pela insólita semelhança com a atmosphere mancuniana, principalmente nos dias nublados, de frio, chuva ou neblina intensa, ou tudo junto, quando o mundo fica todo preto-e-branco e soa melancólico e faz a gente imaginar que em algum lugar there is a light that never goes out...

E domingo foi um dia atípico de Manchester em pleno Portinho. Abri meus olhos de turista e saí por aí com uma amiga, num roteiro tipo gastrocultural. Primeiro, uma passada rápida no brique pra comprar um babador pra um amigo que acabou de virar avô. Mais do mesmo: estátua viva, homem-que-salta-no-meio-das-facas-incendiadas, banda folk country, indiozinhos que cantam sem casa nem cultura próprias, além das cuias saídas pra tomar sol. Tédio igual, menos algumas pessoas, turistas-não-residentes.

E aí, inesperadamente, o diferente. Na procura de um lugar pra almoçar que não tivesse tão abarrotado, os olhos de turista avistaram do outro lado da rua uma casinha com o nome de Santa Felicidade. Oooops! Um pedacinho de Curitiba em pleno Bonfim? Não. Só uma feliz coincidência de nomes. Uma graça de lugar, com uns donos bem legais. Comida ótima (risoto de salmão foi a escolha), bom vinho e bom preço. Onde? Logo ali no início (ou fim, dependendo da perspectiva) da Santo Antonio.

Depois dessa santa felicidade, centro cruzado a pé, no rastro do sol, rumo ao Gasômetro. Último dia de "o riso e a melancolia". Mais diferente. Mais riso que melancolia, humor meio negro, como no cartaz ao lado, e muitos ternos olhares sobre quatro patas no video de William Wegman com seus weimaraners.
Frio, céu azul, comida, diversão e arte. Um dia perfeito no portinho alegre que deixo aqui registrado pros ausentes e presentes, partidos e voltados, importados e deportados.

-----
Agora, já com pouco mais de 9 anos de Portinho, depois de um verão insuportável e em meio a um inverno digno da mudança pra cá, o olhar segue encantado e presenteado com novas descobertas. Hoje, num domingo de cidade cinzenta e recolhida, antes de me entorpercer bebendo vinho, melhor foi encarar uma sessão tripla de cinema, no Cine Bancários. Última oportunidade pra ver a mostra Vídeo Índio Brasil edição 2010. Imperdível, mas que muitos não-turistas perderam.

Os "indiozinhos" do domingo acima saíram das ruas e foram parar nas telas pra contar como os brancos "os cercaram em chiqueiros" [tomando emprestado a fala envergonhada de um deles] e nos chocar com sua "crueldade" ao nos mostrar como se abate um sabiá de pescoço vermelho com um tiro de estilingue e depois se come o bicho assado à moda antiga. Cruéis eles? Os brancos também comem bicho e não são menos cruéis só porque podem pagar por isso.

No intervalo entre uma sessão quase exclusiva e outra, o presente extra foi conhecer os bastidores do cinema, a sala de projeção e o funcionamento de um projetor de filmes em 35mm, além de aprender como se emenda uma tira de filme na outra. Raridade hoje em dia. Raridade também o Fernando, o operador, que adora o que faz, bem a la Alfredo & Totó.

Baita viagem! Muito bom ser turista sem sair de casa...

Um comentário:

  1. Adorei passear contigo nesses domingos, vendo Porto através dos teus olhos. Conheci coisas que não sabia e acho uma graça as referências (subtextos) que passam pelo "bichinhos" que adoras: "Cachorro Grande"; Wander Wildner, "bebendo vinho" pois teve seu cachorro roubado;os "weimaraner" do Wegman. A Santa Felicidade tb me interessou e deu "água na boca"; o Cine dos Bancários e sua sessão tripla! Acho que Porto Alegre precisa de ti, Luzia, pois a vês/lês como ninguém. Beijão da Góia

    ResponderExcluir